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Essa afirmação por mais estranha que pareça é relativamente comum entre donos de cães, especialmente quando a proposta de utilização de comida para o treinamento de comportamentos é sugerida por amigos, algum adestrador ou as diversas outras fontes de informação sobre o assunto disponíveis hoje.

Pensando racionalmente, será que é possível que um cão (organismo vivo) saudável não seja motivado por comida? Se isso está acontecendo com o seu cão, é melhor procurar um veterinário com urgência pois ou ele está doente ou já passou dessa pra melhor (ou pior, depende do ponto de vista).

A questão é que todos os cães saudáveis precisam de alimento para continuarem saudáveis, na verdade precisam de alimento para continuarem vivos e isso é algo que independe da sua opinião em relação ao uso de alimentos no adestramento. Reconhecer que seu cão tem motivação por comida é a primeira coisa que devemos fazer, admitir que mesmo que eu ainda não consiga utilizar comida no adestramento, o cão come e isso é um fato.

Como humanos, mesmo gostando de comer não comemos o tempo todo, também não comemos qualquer coisa, ou seja, temos nossas preferências, dificilmente comemos em momentos de pânico ou medo e quando nosso estado emocional é de alguma maneira extremo, tendemos a não pensar em comida, pelo menos não de imediato.
A fome (fisiologicamente falando), ansiedade, questões sociais (estar em grupo por exemplo), tédio e muitos outros fatores podem nos motivar a comer, muitas vezes comemos só porque os outros estão comendo ou sentimos vontade de comer só porque fomos lembrados de uma experiência passada onde saboreamos algo muito gostoso. Independente das razões, sabemos que há motivações para comer e também para não comer.

Existem também diversas razões pelas quais um cão pode não querer comer em determinadas situações, inclusive durante o adestramento. O primeiro fator que deve ser descartado é o que já mencionei no começo do texto, o cão pode estar doente e isso é algo que deve ser checado com um veterinário para garantir que você não está forçando uma situação que para o cão vai muito além do não querer comer naquele momento.

Descartando a possibilidade do cão não estar bem fisicamente podemos então estudando um pouco da vida e do temperamento do cão, entender o porquê as guloseimas que você estar oferecendo durante os treinos não são bem vindas. Abaixo segue alguns fatores que podem estar influenciando a disposição do cão a aceitar comida no adestramento:

1. O tipo de reforço de comida utilizado não é saboroso ou interessante o suficiente para concorrer com os estímulos ambientais que concorrem pela atenção do cão naquela situação. A solução para este caso seria aumentar o valor dos reforços utilizados, fazendo uso de comidas mais interessantes e saborosas, pedaços de carne, frutas, queijo, etc., podem ser boas opções (consulte seu veterinário caso tenha dúvidas em relação ao que o seu cão pode ou não comer). Alternativamente você também pode tentar ensinar seu cão em um ambiente mais familiar, onde as distrações não sejam tão fortes e com isso fazer com que seja mais fácil para ele prestar atenção e se interessar pelo que você tem pra oferecer.
2. O cão esta saciado e não tem interesse pelo alimento oferecendo naquele momento. Neste caso a solução pode levar um pouco mais de tempo pois um cão que acabou de comer seu jantar, vai demorar um pouco até sentir fome novamente, seria a mesma coisa que pedir para um jovem estudar para o vestibular após ter terminado de comer uma Ceia de Natal, ele provavelmente se sentiria letárgico e desinteressado. Existe também o caso de cães que estão saciados porque comem muito, seja porque as quantidades oferecidas em cada refeição ultrapassam suas necessidades nutricionais ou porque tem comida disponível o tempo todo (esta segunda razão é muito comum). Se um destes for o motivo, o cão precisará passar por uma reestruturação da maneira com que o seu alimento é disponibilizado, em muitos casos o simples fato de estipular horários definidos para as refeições já é o suficiente (certificando-se de retirar a comida caso o cão não coma nos 15 primeiros minutos). Se o problema for a quantidade, o dono terá que reavaliar o quanto o cão come o reduzir a quantidades que sejam indicadas para aquele animal, novamente um veterinário pode ajudá-lo com isso.
3. O cão está estressado e portanto não se sente à vontade para comer naquela situação. Isso pode acontecer com cães que até são motivados por comida em outras situações, deve-se encontrar as razões que podem estar causando o estresse no cão e afasta-las, ou afastar o cão delas. Isso deverá ser feito inicialmente para conseguir fazer com que o cão coma mas, se existe um tipo de situação onde seu cão se sinta estressado o suficiente a ponto de não aceitar alimento que normalmente aceitaria, o ideal é que o dono busque ajuda de um adestrador qualificado para ajudar trabalhar a questão e ajudar o cão.
4. O cão está muito excitado e não consegue comer. Esta situação é similar a questão do estresse, no sentido que o cão está em um estado emocional extremo e com isso seu corpo prioriza outras coisas que não são a comida naquele momento. A solução também seria similar, onde reduzir a excitação e acalmar o cão deve acontecer antes de tentar treinar.
5. O cão prefere brinquedos e quando estes estão presentes, não consegue focar em comida. Esta é uma razão legítima e alguns cães (indivíduos) com temperamentos específicos, podem ficar tão alucinados por brinquedos que ignoram comida totalmente. Existem duas alternativas aqui, primeiramente retirar os brinquedos e trabalhar com o cão em contextos onde ele não tenha a expectativa de que eles vão aparecer e segundamente, utilizar o brinquedo como o seu reforçador de preferência no adestramento do cão (não há problema algum nisso). Para alguns casos onde a obsessão pelo objeto ou brinquedo é muito grande, será necessário a ajuda de um profissional experiente pois ode ser difícil “quebrar” essa obsessão e conseguir que o cão coopere com o treinamento dos comportamentos que você deseja ensinar.
6. O cão prefere carinho e portanto não é necessário usar comida. Esta afirmação é muito comum entre donos que por alguma razão já tem algo contra a utilização de comida no adestramento (não estou questionando a opinião, isto é assunto pra outro texto). Sim, é possível mas extremamente raro, utilizar somente carinho como motivador para o adestramento de cães, isso porque a maioria dos cães não vê carinho como algo reforçador o suficiente para incita-los a executar ações que a princípio não são de interesse deles ou focarem em padrões de movimento que não fazem sentido no mundo canino (cumprimentar por exemplo). O mais comum é que quando o carinho está sendo citado como único motivador, outros fatores estejam influenciando as respostas do cão. Um exemplo disso é o cão que aprende a sentar ou deitar com a utilização de um enforcador para “auxiliá-lo” a assumir a posição, mesmo que o cão ganhe carinho depois e até goste disso, o motivo pelo qual ele senta ou deita não é o carinho e sim a motivação de diminuir o desconforto do enforcador.

A questão da utilização de comida no adestramento já é polarizada o suficiente e muitas pessoas já tem suas opiniões definidas, minha intenção não é mudar a opinião de ninguém mas sim trazer um pouco de razão para a questão da motivação por alimento dos cães. Não adianta fingirmos que o cão é o problema, devemos reconhecer que se utilizar alimento para ensinar seu cão é uma opção que queremos considerar, é importante também sabermos como fazer dessa utilização algo eficiente e possível.

Eu opto por utilizar comida em grande parte do treinamento que faço com meus cães e cães de meus clientes porque prefiro e acredito que os cães também prefiram aprender motivados por algo que busquem alcançar do que motivados por algo que queiram evitar.
As velhas questões quanto a dependência que o treinamento com comida pode criar, o velho argumento de que o cão está sendo comprado e não está obedecendo ou que ele deve fazer por respeito ao dono ou amor, eu deixo pra outra hora e sugiro que os interessados no assunto reflitam na seguinte afirmação:
“A comida utilizada no adestramento de cães deve ser vista e utilizada como uma ferramenta, assim como a coleira, a guia, um clicker, o carinho os brinquedos e a relação de confiança que desenvolvemos com o cão. Esta ferramenta, assim como as outras citadas, pode ser de grande valia e utilidade se for utilizada correta e responsavelmente, acelerando o processo de aprendizagem e com isso os resultados almejados.”